sexta-feira, dezembro 19, 2008

O CONVENTO DE NOSSA SENHORA DA GRAÇA:




Notas Bibliográficas de Freiras, com Fama de Santidade e Virtude, que nele habitaram nos séculos XVI/XVII [1]
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1. Introdução


A identificação em 2006, de uma enigmática estrutura “amuralhada” anexa ao convento de Nossa Senhora da Graça do Torrão, que em trabalhos anteriores defendemos ter uma génese muçulmana[2], veio dar uma inesperada visibilidade a este monumento religioso que marca a paisagem urbana.
Desde logo sentimos a necessidade de efectuar uma abordagem monográfica a este conjunto monástico.
Afirmamos desde já que não é finalidade deste trabalho efectuar o estudo exaustivo deste monumento, não só porque tal não seria possível no âmbito do espaço disponível da revista Neptuno, como para esse efeito, teríamos que ter acesso e “ler/transcrever” grande parte da documentação produzida no seu cartório.[3]
O nosso objectivo é mais modesto e pretende nas páginas seguintes dar início ao estudo deste monumento, começando por dar a conhecer alguma da documentação a que tivemos acesso.
Como já afirmamos anteriormente e é bom relembrar, a História do Torrão encontra-se por fazer e praticamente não existem monografias referentes aos principais monumentos da vila.
O que temos actualmente à nossa disposição correspondem a breves notas ainda elaboradas no século passado, que continuam importantes como ponto de partida, mas que já não dão resposta às actuais solicitações.

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2. Breve Nota Histórica sobre a Origem do Convento

Este convento da Nossa Senhora da Graça, da Ordem de Santa Clara/Clarissas, era da Jurisdição do Ordinário.[4]
Tudo terá tido início em 1560. Segundo Jorge Cardoso[5], cronista da vida religiosa que viveu no século XVII:

“ Edificou-se sobre certo casório de uma nobre matrona, chamada Britis Pinta, que o foi muito mais por sua honestidade, e recolhimento (no) ano (de) 1560, de licença del Rei D. Sebastião, debaixo da invocação de S. Marta. Por cuja morte, outra matrona, parenta sua muito chegada, por nome Maria Pinta, se recolheu a ele, com suas criadas, e algumas donzelas da terra, as quais gastavão o tempo com singular louvor em actos de exemplares mortificações, e virtudes.”

Segundo o Pároco do Torrão[6], “essas casas” correspondiam a uma capela de Santa Marta e alguns anexos, onde vivia como beata e instituidora Maria Pinta: “... e obtiveram Licença da Mesa de Consciência para fundarem; ficando as ofertas para os Priores. Tem boa igreja de Abobada, bastante Convento, Cerca[7], que lhe acrescentou o Excelentíssimo, e Reverendíssimo Senhor Dom Frei Miguel de Távora, a quem são sujeitas: estão muito pobres...”

Segundo o Padre António Carvalho da Costa, publicado em 1708, mas cujas informações remontam ao século XVII, encontramos os seguintes elementos:[8]

“....(tem um convento) de Freyras da mesma Ordem (Franciscanos), da invocaçaõ de Nª Senhora da Graça, que se fundou pelos annos de 1560, com licença del Rey D. Sebastião em humas casas de Brites Pinta, mulher nobre, & era naquelle tempo Recolhimento dedicado a S. Martha. Depois pelos annos de 1599, se fundou o Convento com esmolas, que a Infanta D. Maria lhe deo.

Curiosamente, Jorge Cardoso, o autor que mais informação nos transmite sobre esta casa monástica, menciona no seu Agiologio Lusitano[9], a ocorrência de uma “ordem divina” que vai dar o impulso necessário para a edificação deste convento.
O convento das Clarissas foi erguido no final do século XVI, sobre as casas e capela de S. Marta, junto à estrada que ia para Beja, numa das entradas da Vila.
A construção da Igreja e claustro obedeceram ao espaço disponível, tendo sido condicionado ao eixo viário então vigente.
De 1599, até meados do século XVIII, o edifício conventual correspondia ao espaço definido pelo corpo da igreja a norte e o claustro a sul.
Com base nas notas bibliográficas de algumas irmãs virtuosas que viveram nesta casa, desde a sua fundação até ao século XVII e que anexamos neste trabalho, ficamos a saber alguns elementos da estrutura arquitectónica do convento e aspectos do seu quotidiano que serão abordados noutros estudos.
Resumidamente, o convento tinha no primeiro andar o dormitório e no rés-do-chão ficava o refeitório. Um dos compartimentos servia de “enfermaria”.
Em termos de hierarquia interna, existiam as irmãs que estavam “proibidas” de sair do convento e que eram apoiadas por serventes, que não estando sujeitas ao voto da Ordem Monástica, teriam em principio, maior liberdade de circulação, podendo ausentarem-se do convento de forma a executarem alguns serviços externos.
Em termos de organização do espaço edificado, para sudoeste, a estrada de Beja cortava a possibilidade de expansão da cerca conventual. É nesta banda, no outro lado da estrada, mas pertencente a outro proprietário, que existia ainda de pé, o que terá sobrevivido da musalla[10], já despojada da sua memória. [11]
Segundo as Memórias Paroquiais, esse espaço é laconicamente denominado de “Cerca” “..., que lhe acrescentou[12] o Excelentíssimo, e Reverendíssimo Senhor Dom Frei Miguel de Távora, a quem são sujeitas: estão muito pobres...”
O facto de pertencer a um elemento da família Távora é outro dado a reter, dada a ligação familiar directa existente com o ultimo Mestre da Ordem de Santiago, D. Jorge, filho bastardo de D. João II.
Admitimos, mesmo sem provas documentais claras, que a referida “Cerca Amuralhada”, poderá terá pertencido aos Espatários, desde a conquista até uma data indeterminada após o século XVI, altura em que entrará no património dos Távoras.
Desconhecemos como terá sido aceite pela vereação do Torrão a desactivação da estrada para Beja, contudo a “anexação” deste troço foi efectuada e consumada, mantendo-se actualmente.

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4. Breves Apontamentos Bibliográficos: Anexo documental

A nossa base de trabalho incidiu na pesquisa efectuada na obra de Jorge Cardoso, o Agiologio Lusitano, escrito no século XVII e cujo último volume foi publicado no século XVIII.
Não se trata de um registo completo de todas as freiras que habitarem este convento, mas o seu autor, quis dar a conhecer a vida e feitos milagrosos de algumas religiosas que de uma maneira ou de outra, foram consideradas santas ou virtuosas e como tal, merecedoras de registo para memória futura.
Estes elementos, permite-nos tentar imaginar como seria o quotidiano num espaço conventual feminino nesta região após o Concilio de Trento e até ao final do século XVII.


Nota Prévia:

Mantivemos o texto original, contudo para facilitar a sua compreensão, procedemos à actualização de algumas palavras, mudando igualmente a paginação original, dado que os textos encontram-se encadeados entre si, numa sequência contínua, sem parágrafos.
Muitas das vezes, o cronista não refere as datas dos acontecimentos que relata, mas dado que o convento foi fundado em finais do século XVI e o autor escreveu no século seguinte, estamos cientes que os relatos mencionados mencionam acontecimentos centrados no século XVII, provavelmente na primeira metade.
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História e Lenda da Fundação do Convento de Nossa Senhora da Graça do Torrão (28 de Março)

E já que referimos a fundação do Carmo de Évora, e bem que não saiamos de seu Arcebispado, sem fazermos o mesmo do de N. Senhora da Graça do Torrão, ainda que seja de diversas religiões, e sexos.
Fica este (convento) dentro naquela vila, sete léguas ao Meio-Dia da cidade (de Évora).
Edificou-se sobre certo casório de uma nobre matrona, chamada Britis Pinta, que o foi muito mais por sua honestidade, e recolhimento (no) ano (de) 1560, de licença del Rei D. Sebastião, debaixo da invocação de S. Marta.
Por cuja morte, outra matrona, parenta sua muito chegada, por nome Maria Pinta, se recolheu a ele, com suas criadas, e algumas donzelas da terra, as quais gastavão o tempo com singular louvor em actos de exemplares mortificações, e virtudes.
Neste começo sucedeu que a serva de Deus Maria da Cruz (de quem no texto falamos) sendo dama da Infanta D. Maria, pediu ao céu com instância lhe manifestasse como melhor poderia agradar a Christo seu esposo.
Eis que estando uma noite à janela do Paço, que caía sobre o jardim, se lhe afigurou que um cavaleiro entrava no tanque, que ali havia, dividindo a água com o coto da lança: e como diferença, e bem entendida, julgou da visão a pouca firmeza, e permanência desta vida.
Outro dia estando na mesma janela contemplando nos perduráveis bens da eterna, ouviu dizer:
- Não te agastes, que por teu meio se há de fazer um muito religioso convento.
E ficando transportada, passou uma ave tão branca como a neve, que lhe disse:
- No Torrão.
E como nada se move sem a vontade divina, inspirou Deus neste tempo a Leonor de Jesus, Velleira deste Recolhimento, que viesse a Lisboa pedir esmola à dita Infanta, a qual (como curiosa, e devota) estando-se informando dos procedimentos de suas habitadoras, chegando neste começo Maria da Cruz, julgando do que ouvia, que esta era sua vocação, lhe declarou logo as misteriosas visões, com que (sem dificuldade) alcançou licença para deixar o mundo.
Despida então do secular traje, e vestida do humilde fardo, se foi com a Velleira para o dito Recolhimento, onde foi muito festejada de Maria Pinta, e mais companheiras.
E logo com a esmola da Infanta se fez dormitório, e comprou renda (ainda que pouca) com que passarão algum tempo debaixo da Terceira regra; e querendo elas dar obediência à Província dos Algarves, o não consentirão seus Prelados.
O que sabido de D. Theotonio de Bragança (então Arcebispo d´Èvora) as aceitou, com licença del Rei.
E do reformado convento do Salvador da mesma cidade, levou para fundadoras a cinco de Fevereiro de 1599, as Madres Margarida de S. Marta, e Maria da Conceição, religiosas de grande espírito, que tinham ido de S. Marta de Lisboa.
E com tal observância obrarão, que nenhuma (ainda hoje/1650) fala mais que o (seus) pais, em presença de duas escutas, as cartas que lhe mandão são primeiro lidas pelas preladas, as penitencias são de cada hora, e as mortificações perpetuas.
Sobre estes altos fundamentos se edificou o sólido edifício desta santa casa, resplandecendo nas virtudes (como diamante entre as mais preciosas pedras) a boa velha Maria da Cruz, que morreu em quinta-feira santa, ano 1623, com 109 anos de idade.
Tudo o referido é tirado de seu cartório, e de uma relação verdadeira, que por meio do Chandre de Évora Manoel Serafim de Faria se nos comunicou.
J. Cardoso, (1657), Agiologio Lusitano, II, 346, 347

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Sòr Maria da Cruz Franc. (28 de Março)

Em N. Senhora da Graça do Torrão, Arcebispado de Évora, o falecimento de Sòr Maria da Cruz, origem, e princípio desta religiosa casa.
Criou-se ela na da Infanta D. Maria, onde já se levantava às duas horas depois da meia noite a orar, o que continuou consagrada a Deus por voto, levando-lhe a maior parte do dia este louvável, e santo costume, a que juntava estreita pobreza, trazendo hábito de xerga, seguindo as comunidades com austera vida.
Nunca usou de medicina, ou cura alguma nas enfermidades, nem por mais doente, que estivesse, comeu carne em festa, ou sábado, mais que o pior, e sobejos das outras, nem sendo velha, (não) consentiu (que) usassem com ela de algum mimo, ou regalo particular.
Rezava todos dias o Psalterio pelas almas, e era tão compassiva, que não podia ver matar uma ave, e por isso tinha muito particular cuidado dos gatos, os quais a seguião para onde quer que ia, e no refeitório a cercávão.
Sucedeu que fazendo a esta serva de Deus, Vigaria da casa, lhe disserão algumas religiosas motejando. Agora sabe V. R. o que há de fazer, ir à mesa travessa, rodeada de gatos. Ela ouviu, e calou. E depois chamadas a todas lhes fez Capitulo, dizendo:
- Bem vedes, que para mor de vós me deste autorização, e já disserão, que não era para o cargo, vós vos avisais, que estes três anos não entreis no refeitório, e esperais à porta, que eu terei cuidado de vos prover
Foi coisa admirável, e misteriosa, que como se tiverão uso de razão, se abstiveram o triénio, sem entrarem nele, esperando fora que a Madre viesse para lhes dar sua refeição (coisa publica, e notória na dita casa) e acabando o ofício, continuarão como dantes.
Veio esta santa velha no fim da idade a cair em cama, onde prosseguia a mesma vida, que em moça, até que (com santa inveja de suas companheiras) caminhou para os choros Angélicos, a quem todas imitávão, como modelo excelente de virtude, e exemplar de perfeição.
J. Cardoso, (1657), Agiologio Lusitano, II, 339, 340




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Sòr Clemência de Jesus Clarissa (24 de Março)

No mesmo dia, em o convento de N. Senhora da Graça do Torrão, Arcebispado d´ Évora, o óbito de Sòr Clemência de Jesus, religiosa penitente, & fervorosa na oração, que regava com grande copia de lágrimas, na qual foi vista por vezes, pregar-se ao lugar, onde a exercitava, porque o espírito a levava pelos ares.
Persuadida então das companheiras, que lhe declarasse algumas coisas das quais o divino Amante lhe dava a sentir, para mais louvavam, e engrandeceram suas misericórdias, nunca quis, antes molestava a todas, que guardassem silencio, quando fossem tão ditosas, que ele lhes comunicasse semelhantes favores, trazendo por exemplo aquelas palavras de seu Santo Patriarca: secretum meum mihi. Assentada no refeitório para comer, debulhava-se primeiro em lágrimas, e perguntando-lhe, porque chorava, respondia: Acho-me indigna de ter lugar na mesa de S. Clara; por ser sua humildade, que tanto a abatia, quando subia pela oração.
Chamada para o Sacramento da Penitencia corria a mor pressa, dizendo: Que não queria lhe preferisse ninguém na hora de sua salvação. Finalmente na última doença, por espaço de 18 dias, não levou nada para baixo, e rogada das religiosas, que comesse
para poder com o mal, respondia com devoção: Non in solo pane viuit homo; e assim mesmo neles não falava mais que consigo, ouvindo-se-lhe uma vez entre dentes: Inimigo não tens, que fazer comigo, porque as esmolas, que despendi sendo porteira, forão com licença da prelada. E com estas palavras na boca: Sorores sobriae estote, & vigilate, quia aduersarius vester diabolus, tamquam leo rugies, &c.
Acabou, como viveu, com morte santa.
J. Cardoso, (1657), Agiologio Lusitano, II, 304, 305

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Sòr Mariana de Assunção Franciscana (18 de Abril)

Neste dia, em N. Senhora da Graça do Torrão, Arcebispado de Évora, deixou de viver Sór Mariana da Assunção, a qual de muita pouca idade começou a dar mostras, que o soberano Amante a tinha escolhido para sua querida esposa, antecipando-lhe a graça prevenindo o uso da razão, jejuando, e orando perpetuamente, usando de vilíssimo habito pardo com honesto toucado, até que acompanhando a duas irmãs suas, que vinhão ser freiras no dito convento, tanto que abrirão a porta regular, entrou de romaria com elas, contra vontade de seus pais, e dos Prelados, porque era muito achacosa, e doente; mas forão tantas suas lágrimas, e soluços querendo-a logo por na rua, que mandou com censuras o Arcebispo D. Diogo de Sousa (remoto parente seu) que a deixassem ficar até constar a vontade divina.
Coisa maravilhosa! De improviso a desamparou a febre, e cobrou perfeita saúde com admiração de todos.
Passados alguns meses, querendo a Abadessa lançar-lhe o habito, recresceram duvidas sobre o dote, buscada neste começos para seus pais a levarem para casa, foi achada de joelhos em oração num entre forro, abraçada com um Crucifixo, banhada toda em lágrimas, meio com que elas a acharam-na mais depressa.
Vendo-se pois D. Mariana entre as servas de Deus numerada, tratou de as imitar, empregando-se em altíssima contemplação, na qual o celestial esposo lhe revelou notáveis segredos.
Destes felizes progressos em breve na virtude, por vezes (o) invejoso demónio, pretendeu inquietá-la, para isto se transformava em Anjo da Luz, fazendo-a a sentir em coisas contrárias a sua salvação.
E dando ela conta a seus Padres Espirituais, parecendo-lhes que estava iludida, foi examinada por graves, e doutos Teólogos, os quais averiguarão, que tivera vinte e duas revelações verdadeiras, e que nesta somente fora enganada, permitindo assim Deus para mais a humilhar.
E porque o negócio andava já na boca da comunidade, a Madre Abadessa (por conselho dos Confessores) lhe deu algumas penitências publicas, como tomar disciplina, servir na cozinha, andar sem chapins (calçada), comer com as serventes, e lavar os pés a todas, o que ela obrava com extraordinária alegria, e contentamento, não fazendo caso das injurias, e afrontas, com que era (sujeita) a toda a hora, mais que responder com sumida voz, quando lhe chamavão endemoniada: Também a meu Senhor Jesus Cristo o chamarão, e a serva não á de ser melhor, que o senhor.
Sobrevindo-lhe então um frouxo de sangue á boca, conhecendo daqui a brevidade da vida, pediu o sagrado Viático, e santa Unção, tremendo a casa ao tempo, que se lhe administrou.
De que ela com grande serenidade voltada para a Abadessa disse: São traças do inimigo, a quem não temo pela misericórdia divina.
Rendidas do sono as religiosas, que lhe assistirão, na madrugada do Sábado santo, bradou tão alto, que lhe dessem a candeia, que se ouviu no dormitório, e acudindo-lhe, repetiu o Credo pausadamente, e nas ultimas palavras
- Et vitam aeterenam Ame(m); foi gozar dela para sempre, em companhia das santas Virgens da Ordem.
J. Cardoso, (1657), Agiologio Lusitano, II, 628, 629

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Sòr Francisca das Chagas Menorita. (2 de Maio)

No Convento de N. Senhora da Graça do Torrão, a saudosa memória da Madre Francisca das Chagas, que de menina se entregou toda à virtude, padecendo logo gravíssimas tentações, maquinadas pelo inferno, das quais (ajudada do braço Superior) saia sempre vitoriosa.
Era tão aplicada à oração, e meditação, que gastava nela dias, e noites inteiras sem o sentir, com tão copiosos mares de lágrimas, que correndo em fio de seus olhos, banharão o lugar em que premeditava.
Tomava graves penitências, e disciplina por suas mãos, repousava sobre áspera cortiça, passava quase todo ano sem se dejejuar, e desejava tanto padecer pelo Redentor, que continuamente lhe pedia atormenta-se seu corpo com tais dores, e chagas, que parecesse outro Job, até que mereceu ouvir de sua divina boca:
- Filha estás despachada à medida do teu desejo: com que ficou muito consolada.
Quando dali a poucos dias lhe nasceu um mordaz cancro na face esquerda, e tanto se apoderou da queixada, que em breve chegou ao ombro com notável disformidade, sobrevindo-lhe a tempos copiosos froxos de sangue, os quais (feita um protótipo de paciência) com inaudita alegria recolhia numa vasilha, que para isto trazia consigo, ficando muitas vezes quase morta; sem pulso, até que tornava, dizendo:
- Este é o favor que o soberano Rei da Gloria me prometeu: pelo qual lhe rendia multiplicadas graças, e muitas mais, depois que se viu segregada da Comunidade, por conselho dos Médicos, entendendo-se ser o mal contagioso.
Porem as Religiosas, como havia sido mãe de todas, obrigadas do excessivo amor que lhe tinham, nunca a desampararam.
As quais ela dizia confiadamente:
- Madres por mais que continuem em me ver, não hão de contrair semelhante mal, porque o Senhor assim mo prometeu, quando lho pedi, reservando só para esta pecadora, tão cordial mimo.
Neste estado preservaram seis meses, sem afroxar já mais de seus rigores, nem consentir roupa de linho no leito.
E vaticinando a morte, que seria no princípio de Maio, preparava para ela o sagrado Viático, e santa Unção, se foi em provizo ao refrigério eterno.
No dia seguinte, praticando na varanda duas
Religiosas à prima noite cerca de sua salvação, levantando (por) acaso os olhos ao Céu, virão uma extraordinária luz, que lançava de si refulgentes raios, e no meio uma alvíssima pomba, com asas argentadas, como a pinta ou Psalmista, e gritando ambas:
- Lá vai a alma de Sòr Francisca para a glória.
Acudirão a seus brados outras, que também participarão da mesma visão, e o resto da casa, que naquele comenos estava em oração, entendeu o mesmo, porque querendo aquelas contar a estas, o maravilhoso sucesso, elas lho manifestarão primeiro, com que todas louvando ao Senhor, ficarão certas de sua predestinação.
J. Cardoso, (1666), Agiologio Lusitano, III, 31, 32

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Catharina de S. João (3 de Maio)

Neste dia, no Convento do Torrão, rematou seus breves, mas felizes anos, Catharina de S. João, servente desta santa Comunidade; em cujo humilde exercício, se mostrou sempre diligente, solicita, zelosa, e afável, atraindo a si com isto, as vontades de todas.
Passava a vida irrepreensivelmente, com tal pureza de consciências, que mereceu ver, três dias antes que expirasse, a Cristo crucificado, e a Maria Santíssima, a quem encomendou a perpetuidade desta casa, dizendo também coisas admiráveis, e celestiais, no espaço deles, até que voou sua cândida alma, como Pomba sincera, a descansar em ninho da eternidade, tendo somente vinte anos de idade.
J. Cardoso, (1666), Agiologio Lusitano, III, 51

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Sòr Isabel do Rosário Clarissa (6 de Maio)

Em N. Senhora da Graça do Torrão, (Mosteiro de Clarissas no Arcebispado de Évora) a saída deste para o outro mundo de Sòr Isabel do Rosário, Freira de véu branco, em cujo sujeito resplandecia já no berço a santidade, onde parece a prevenio o Senhor, para mimola, e regalada esposa sua.
Crescendo pois na idade, e virtude, vendo-se alistada entre as servas de Deus, fez seu emprego na oração mental, delicioso pasto das almas, em que recebia singularíssimos favores do Céu, e na lição dos livros devotos, e espirituais, que lhe servirão de mestres para os saber conhecer, e estimar.
E com isto agradou tanto ao celestial esposo (a quem todos seus cuidados se dirigião) que sublimou uma alta contemplação, e intima união com ele, nomeando sempre a N. Senhor pelo seu Amado.
E por ter esta prerrogativa a Águia dos Evangelistas, lhe era tão afecta, que nos dias de suas Festas, corriam por sua conta os gastos, e esmolas das Missas. E assim mesmo ao mellifluo Bernardo, por ser amores da Rainha dos Anjos.
Era muito caritativa para as enfermas, desvelava-se em lhes assistir, e procurar o necessário de cada dia, não se apartando nunca da presença divina.
Na ultima enfermidade, conheceu dias antes, que dela havia de morrer, dizendo continuadamente:
- Graças vos dou Senhor, por ser já chegado o tempo de minha alma deixar o cárcere terreno, que há quarenta anos a detêm. Bendito sejais meu Amado, que brevemente vos hei-de ver às claras nessa Celestial Jerusalém, que tantas vezes passeie em espírito.
E desejando já de chegar àquela ditosa hora, confessou-se geralmente com muitas lágrimas, porem não comungou por causa dos vómitos, contendo-se com adorar o Santíssimo Sacramento, pedindo ao Sacerdote, que lhe desse a beijar a sagrada Hóstia, para consolação sua.
Tomou logo os Santos Óleos, e estando muito presente a tudo.
Porque perguntando-lhe neste comenos certa Religiosa:
- Se estava conforme co a divina vontade. Respondeu:
- Paratum cor meum Deus, paratum cor meum.
E vendo que se acabava a semana, prazo pelo Céu
assinado, sem fazer jornada, na noite da festa para o sábado, exclamou:
- Ainda amanhã, Senhor, ainda amanhã.
E inquirida a razão, não acudiu com ela, sendo que tinha os sentidos mito espertos.
E Quando depois virão que falecera ao Domingo, entenderão que se queixava de ter mais um dia de vida.
Abraçada então com um Crucifixo, pronunciando aquelas devotas palavras:
- Christus factus est pró nobis obediens, vsque ad mortem, rendeo o galhardo espírito.
J. Cardoso, (1666), Agiologio Lusitano, III, 97,98

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Sòr Catarina da Trindade. (22 de Junho)

Também no Convento de N. Senhora da Graça do Torrão, resplandeceu entre outras servas de Deus, a Madre Catarina da Trindade, que nunca faltou nas Comunidades, por maiores enfermidades que padecesse.
Era muito penitente, e abstinente, debreavase com açoites continuadamente, sem levar para baixo coisa de porte.
Sabendo que alguém se escandalizara dela, antes que se recolhesse, lançada a seus pés, com as mãos postas, lhe pedia perdão, dizendo:
- Que não isto virtude, mas obrigação da Regra.
Três dias antes que expirasse, esteve sem ver, nem ouvir nada deste mundo, dizendo coisas admiráveis do outro, e batalhando com o inimigo infernal, até que pronunciando com voz prateada:
- Laudate Dominum omnes gentes, partiu para o choro das santas Virgens, em idade de 28 anos, acompanhada de egrégios feitos.
J. Cardoso, (1666), Agiologio Lusitano, III, 787

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Bibliografia

Fontes impressas


CARDOSO, Jorge (1657) Agiológio Lusitano dos Sanctos, e Varoens illustres em virtude do Reino de Portugal e suas conquistas, Vol II, Of. Henrique Valente de Oliveira. Lisboa. (PDF – Site da Biblioteca Nacional)

CARDOSO, Jorge (1666) Agiológio Lusitano dos Sanctos, e Varoens illustres em virtude do Reino de Portugal e suas conquistas, Vol III, Of. António Craesbeeck de Melo. Lisboa.. (PDF – Site da Biblioteca Nacional)

CARDOSO, P. Luís (C. Or.) (1747-1751) Dicionário Geográfico. Régia Oficina Silviana e da Academia Real, 2 vols., Lisboa. (PDF – Site da Biblioteca Nacional)

CASTRO, João Baptista de (1762-1763) Mappa de Portugal Antigo e Moderno. 3 Vols. Lisboa. (PDF – Site da Biblioteca Nacional)

MACEDO, Carla (2008). Inquéritos Paroquiais de 1758 no Concelho de Alcácer do Sal: Resposta da Freguesia do Torrão. Neptuno, nº 15, ADPA.

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Estudos

CABRITA, A Catarina; CARVALHO, A Rafael e GOMES, Fernando (2008) Contributo para o Estudo das Cerâmicas Medievais/Modernas do Torrão: O Largo Bernardim Ribeiro, Colecção Digital - Elementos para a História do Município de Alcácer do Sal, Nº 2 (II Parte), p.12-31.
http://www.cm-alcacerdosal.pt/PT/Actualidade/Publicacoes/Paginas/EstudosdoGabinetedeArqueologia.aspx

Carvalho, A Rafael (2008) A Muṣalla do Ḥiṣn Ṭurruš/Torrão: Uma Leitura Arquitectónica. Colecção Digital - Elementos para a História do Município de Alcácer do Sal, Nº 3.
http://www.cm-alcacerdosal.pt/PT/Actualidade/Publicacoes/Paginas/EstudosdoGabinetedeArqueologia.aspx

CARVALHO, A Rafael (2008) A Geografia Conventual Alcacerense: Elementos para uma História Eclesiástica do Município de Alcácer do Sal. Neptuno, nº 15, ADPA.

CARVALHO, A Rafael (2008) A Muṣalla do Ḥiṣn Ṭurruš/Torrão: Uma Hipótese de Trabalho. Revista Al Madan Nº 16, II Serie (prelo)

CUNHA, Mário Raul de Sousa, 1991. A Ordem Militar de Santiago (das Origens a 1327), Dissertação de Mestrado, apresentado à Faculdade de Letras do Porto. (policopiado)

SOUSA, Ivo Carneiro de (2002) A Rainha D. Leonor (1458-1525): Poder, Misericórdia, Religiosidade e Espiritualidade no Portugal do Renascimento, Textos Universitários de Ciências Sociais e Humanas.

Site da ex-DGEMN (actual IGESPAR):
Convento de Nossa Senhora da Graça
http://www.monumentos.pt/Monumentos/forms/002_B1.aspx (consultado a 04-12-2008)
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[1] Versão on-line do trabalho que será publicado no Neptuno nº 15, 2008
[2] Cronologia Almóada.
[3] Cujo destino actual desconhecemos.
[4] Chorão(2000) Conventos. Dicionário de História Religiosa de Portugal, Vol. C-I, p. 22.
[5] Cardoso (1657), Agiologio Lusitano, Tomo II, p. 346
[6] Carneiro Alves (1758). Vila do Torrão. Memórias Paroquiais. Leitura de Carla Macedo, publicado neste numero do Neptuno.
[7] Esta “Cerca” que foi acrescentada ao convento pouco antes de 1758, corresponde à musalla.
[8] Carvalho da Costa (1708) Corografia Portuguesa e Descripçam Topográfica do Famoso Reyno de Portugal. Tomo segundo, p. 484
[9] Cardoso (Ob. Cit.), Tomo II, p. 346-347
[10] Sobre a questão da musalla islâmica, os interessados podem consultar os nossos trabalhos, que estão referenciados na bibliografia e disponíveis no site do Município de Alcácer do Sal.
[11] É provável que no século XVII/XVIII o local fosse encarado como simples cerca/muralha e que uma “tradição local (!)”, de natureza indeterminada, impedisse a alteração profunda do espaço. Apesar dos dados lacónicos, é de aceitar que os terramotos de 1530 e o de 1755 tenham afectado o Torrão. O que identificamos na textura exposta da torre (onde se localizava o miḥrāb), é a utilização de vários fragmentos de estuque de areia de cal de cronologia indeterminada. Será que estamos perante restos do antigo miḥrāb?
[12] Esta palavra “acrescentou” é muito importante, porque representa uma prova documental de que a Cerca já existia de pé, em data anteriormente a 1758 e que nada tinha a ver com a arquitectura conventual, dado pertencer a outro proprietário. Achamos interessante o espaço pertencer a um elemento religiosos da poderosa família Távora, o que sugere que se tratava de um espaço cercado com algum prestígio. O texto não é claro sobre a data da doação, contudo admitimos que, dado que o doador ainda se encontrava vivo em 1758 e que as freiras se encontravam “muito pobres”, é provável que elas terão recebido esta Cerca pouco depois do terramoto de 1755. As fotos da cerca mostram claramente duas fases de construção, que provavelmente mostram a ocorrência de obras após esta calamidade que atingiu o Torrão.